Malba Tahan
Júlio César de Mello e
Souza nasceu há cem anos e celebrizou-se como Malba
Tahan. Foi um caso raro de professor que ficou quase tão famoso quanto um
craque do futebol. Em classe, lembrava um ator empenhado em cativar a platéia.
Escolheu a mais temida das disciplinas, a Matemática .Criou uma didática própria e divertida, até hoje
viva e respeitada. Ainda está para nascer outro igual
Exímio contador de histórias, o escritor árabe Malba Tahan nasceu em 1885 na aldeia de Muzalit, Península Arábica, perto da cidade de Meca, um dos lugares santos da religião
muçulmana, o islamismo. A convite do emir Abd el-Azziz ben Ibrahim, assumiu o cargo de
queimaçã (prefeito) da cidade árabe de El-Medina. Estudou no Cairo e em
Constantinopla. Aos 27 anos, recebeu grande herança do pai e iniciou uma longa
viagem pelo Japão, Rússia e Índia. Morreu em 1921, lutando pela libertação de
uma tribo na Arábia Central.
A melhor prova de que Malba Tahan foi um magnífico criador de enredos é a
própria biografia de Malba Tahan. Na verdade, esse personagem das areias do
deserto nunca existiu. Foi inventando por outro Malba Tahan, que de certo modo
também não existiu efetivamente: tratava-se apenas do nome de fantasia, o
pseudônimo, sob o qual assinava suas obras o genial professor, educador,
pedagogo, escritor e conferencista brasileiro Júlio César de Mello e Souza. Na
vida real, Júlio nunca viu uma caravana atravessar um deserto. As areias mais
quentes que pisou foram as das praias do Rio de Janeiro, onde nasceu em 6 de
maio de 1895. Júlio César era assim, um tipo possuído por incontrolável
imaginação. Precisava apenas inventar um pseudônimo, mas aproveitava a ocasião
e criava um personagem inteiro.
Problemas das 1001 Noites
Malba Tahan e
Júlio César formaram uma dupla de criação que produziu 69 livros de contos e 51
de Matemática. Mais de dois milhões de exemplares já foram vendidos. A obra
mais famosa, O Homem que Calculava, está na 38e edição.
Com o seu
pseudônimo, Júlio César propunha problemas de Aritmética e Álgebra com a mesma
leveza e encanto dos contos das Mil e Uma Noites. Com sua identidade real, foi
um criativo e ousado professor, que estava muito além do ensino exclusivamente
teórico e expositivo da sua época, do qual foi um feroz crítico. "O
professor de Matemática em geral é um sádico", acusava. "Ele sente
prazer em complicar tudo."
Um sucesso feito de trabalho duro, lances de
esperteza e muita imaginação
Um dos
maiores incentivadores da carreira de Júlio César de Mello e Souza foi o seu
pai, João de Deus de Mello e Souza. Ou, explicando melhor, a modesta mesada que
seu pai lhe dava nos tempos de colégio. Funcionário do Ministério da Justiça e
com uma escadinha de oito filhos para criar, João de Deus não podia fazer
milagres. O dinheiro era contadinho. Para comprar uma barra de chocolate, por
exemplo, o jovem Júlio César economizava na condução durante o final de semana.
Redações para vender
Nessa época
Júlio descobriu a mina de ouro que tinha nas mãos. Um dia, um colega de classe
mais endinheirado, mas fraco em escrita, pediu-lhe uma redação que desprezara, Esperança.
Em troca, deu ao autor um selo do Chile e uma pena de escrever nova em folha.
Era o início de um lucrativo negócio. Depois do episódio, para cada tema
lançado pelo professor, o criativo Júlio César fazia quatro, cinco redações e
as vendia a 400 réis cada.
As fumaças do
gênio já começavam a desenhar o futuro Malba Tahan. A família já conhecia seu
gosto pela literatura, mas tinha suas dúvidas:.. "Quando compunha uma
historieta, era certo o Júlio criar personagens em excesso, muitos dos quais
não tinham papel nenhum a desempenhar, dando-lhes nomes absurdos, como
Mardukbarian, Protocholóski, Orônsio", conta o irmão mais velho do escritor,
João Batista, no seu livro Meninos de Queluz, em que lembra a sua infância e a
de Júlio César em Queluz, interior de São Paulo.
Mais velho,
Júlio César aprendeu a lidar com o descrédito. Quando tinha 23 anos, e era
colaborador do jornal carioca O lmparcial, entregou a um editor cinco contos
que escrevera. A [papelada ficou jogada vários dias sobre uma mesa da redação.
Sem fazer nenhum comentário, Júlio César pegou o trabalho de volta. No dia
seguinte, reapareceu no jornal. Trazia os mesmos contos, mas com outra autoria.
Em vez de J.C. de Mello e Souza, assinava R.S. Slade, um fictício escritor
americano. Entregou os contos novamente ao editor, dizendo que acabara de
traduzi-los e que faziam grande sucesso em Nova York. O primeiro deles, A
Vingança do Judeu, foi publicado já no dia seguinte - e na primeira página. Os
outros quatro tiveram o mesmo destaque.
Marechal de pijama
Júlio César aprendeu a lição e decidiu que iria virar Malba Tahan. Nos
sete anos seguintes, mergulhou nos estudos sobre a cultura e a língua árabes.
Em 1925, decidiu que estava preparado. Procurou o dono do jornal carioca A
Noite, Irineu Marinho, fundador da empresa que se tornaria as atuais
Organizações Globo. Marinho gostou da idéia. Contos de Mil e Uma Noites foi o
primeiro de uma série de escritos de Malba Tahan para o jornal. Detalhista,
Júlio César providenciou até mesmo um tradutor fictício. Os livros de Malba
Tahan vinham sempre com a "tradução e notas do prof. Breno Alencar
Bianco".
Júlio César
viveu sem se dar conta do patrimônio cultural que construíra. Em um depoimento
ao Museu da Imagem e do Som, declarou-se profundamente arrependido de não ter
seguido a carreira militar, como queria seu pai. "Eu estaria hoje
marechal, calmamente de pijama, em casa", imaginava. "Não precisaria
estar me virando na vida."
O que Malba fazia fora dos livros e aulas.
Desde menino,
Júlio César de Mello e Souza tinha suas manias. Algumas completamente malucas,
como manter uma coleção de sapos vivos. Quando vivia em Queluz, às margens do
Rio Paraíba do Sul, Júlio César chegou a juntar 50 sapos no quintal da sua
casa. Um dos animais, o Monsenhor, costumava acompanhá-lo, aos saltos, por suas
andanças na região. Adulto, o professor Júlio César continuou a coleção, dessa
vez com exemplares de madeira, louça, metal, jade e cristal.
Outras
preocupações eram bem mais sérias. Ele sempre se entregou de corpo e alma à
causa das vítimas da lepra, os hansenianos. De cabeça aberta e sem
preconceitos, Júlio César de Mello e Souza editou durante 10 anos a revista Damião,
que pregava o reajustamento social desses doentes. A dedicação de Júlio César
era tão grande que, no seu testamento, pediu que lessem, à beira do seu túmulo,
uma última mensagem de solidariedade aos hansenianos.
MUDANÇA NA IDENTIDADE
Malba Tahan,
em árabe, quer dizer o "Moleiro de Malba". Malba é um oásis e Tahan,
o sobrenome de uma aluna, Maria Zechsuk Tahan. Por deferência do presidente
Getúlio Vargas, o professor (ao lado, em aula) pode usar o pseudônimo na
carteira de identidade. Ele gostava de vistar os trabalhos escolares carimbando
o "Malba Tahan" escrito em caracteres árabes
Um professor que andava muito mais rápido do que o
seu tempo
Malba Tahan,
o gênio da Matemática, foi um desastre completo nos números quando era o aluno
Júlio César de Mello e Souza, do Colégio Pedro II, no Rio. Nessa época, seu
boletim registrou em vermelho uma nota dois, em uma sabatina de Álgebra, e
raspou no cinco, em uma prova de Aritmética.
Qual seria a
causa de um desempenho tão fraco para alguém que viria a se apaixonar pela
Matemática? Com certeza, Júlio César não gostava da didática da época, que se
resumia a cansativas exposições orais. Mal-humorado, classificou-a mais tarde
como O "detestável método da salivação".
Nas palestras
que dava - foram mais de 2000 ao longo da sua vida , nas aulas para normalistas
ou nos livros que escreveu, Júlio César defendia o uso dos jogos nas aulas
de Matemática. Enquanto os outros professores usavam apenas o quadro-negro
e a linguagem oral, ele recorria à criatividade, ao estudo dirigido e à
manipulação de objetos. Suas aulas eram movimentadas e divertidas. Defendia a
instalação de laboratórios de Matemática em todas as escolas.
Sem zeros e sem bombas
"Ele estava muito além de seu tempo', afirma o respeitado matemático e
professor paulista Antônio José Lopes Bigode, autoridade em Malba Tahan.
"O resgate da sua didática pode revolucionar o ensino", acredita.
"Ainda hoje, o ensino tradicional da Matemática é responsável por metade
das repetências."
Em sala de
aula, Júlio César não dava zeros, nem reprovava. "Por que dar zero, se há
tantos números?", dizia. "Dar zero é uma tolice:' O professor
encarregava os melhores da turma de ajudar os mais fracos. "Em junho, julho,
estavam todos na média', garantiu no depoimento ao Museu da Imagem e do Som.
"Hoje, as atividades lúdicas são muito valorizadas, mas naquela época eram
vistas como uma heresia", observa o professor de Matemática Sérgio
Lorenzato, de 58 anos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Lorenzato, que foi aluno de Júlio César, guarda como uma relíquia o caderno que
usou para anotar as aulas. "Ele dizia que o caderno tinha de refletir a
vida do aluno", lembra Lorenzato. "E estimulava que colássemos em
suas folhas gravuras, recortes de revistas e jornais e até provas já
corrigidas."
Carismático,
Júlio César encantava os alunos. Mas nem todos se sentiam à vontade com a sua
informalidade. "Os tradicionalistas eram absolutamente contrários a Malba
Tahan e ao seu interesse pelo cotidiano da Matemática", explica o editor
de livros didáticos da editora Scipione, Valdemar Vello.
Júlio César
foi professor de História, Geografia e Física até dedicar-se à Matemática. Sua
fama como pedagogo se espalhou e ele era convidado para palestras em todo o
país. A última foi em Recife, no dia 18 de junho de 1974, quando falou para
normalistas sobre a arte de contar histórias. De volta ao hotel, sentiu-se mal
e morreu, provavelmente de enfarte.
Júlio César
deixou instruções para seu enterro. Não queria que adotassem luto em sua
homenagem. Citando o compositor Noel Rosa, explicou o porquê: "Roupa preta
é vaidade/ para quem se veste a rigor/ o meu luto é a saudade/ e a saudade não
tem cor".
FonteRevista Nova
Escola ( Setembro 1995 )